Capitão de fragata

Encarando o nada,

Tendo em vista o nada,

Enamorado com o nada,

Repetindo o nada,

Esperando alguma epifania

que me diga de vez que eu vou ser pequeno

e para se contentar na grandeza de ser pequeno

e sê-lo com orgulho, dizê-lo: sou pequeno, muito bem

sim o sei, essa é minha vida, essa é minha sina,

eu a carrego, muito bem o sei, pois a Recompensa vale a pena,

mas epifânia não chegando e muito bem não sabendo de nada,

me sento cá neste restaurante na Urca propriedade de um certo 

português, português este que se diz catalão veterano de

velhas batalhas, Maldito Franco, gritamos,

o Mar é uma boa metáfora para o nada, não?,

Mar sendo tão boa metáfora logo localizo um capitão,

capitão de fragata, creio eu, bonito uniforme, posso me sentar contigo?

diga-me capitão, você acredita na salvação da minha e sua alma?

melhor, capitão, você acredita na pequenez da carne e grandeza daquilo

que você não aponta com os dedos, não apalpa com a mão?

-Não, diz o capitão ao se levantar e dizer:

                                                         Visca Joaquim!

(seria Joaquim em catalão escrito com um eme ou ene?).

Naquele dia me mergulhei sete vezes ao mar.

Camarada sem camarada

Eu, camarada sem camarada, faço o sinal de cruz

pois a vida é somente um espasmo de luz e com

método vou construindo uma vida santa, hermética,

e monto em meu cavalo onde, eu, camarada sem camarada,

cavalgo pelos meus campos abertos, campos sem vivalmas,

onde posso finalmente ser verdadeiro comigo mesmo e perguntar:

por quê? por que devo eu?

e finalmente ouvir o vazio desses campos tão vastos que ainda

hão de ser conquistados por aqueles mais velozes e destros do que eu,

por quê? por que devo? por que ousar?

pois bem, Vamos lá, meu camarada sem camarada,

Vamos lá fazer o sinal da cruz pois a salvação é sempre incerta

Vamos lá fazer o sinal da cruz pois é com método que se constrói

                                                                                         a chance de CÉU

Vamos lá fazer o sinal da cruz no campo aberto sem vivalma

Vamos lá, camarada sem camarada, desça do cavalo e diga:

amém, amém, amém.

Ainda não aprendi a voar

Sou nada
além de uma completa nulidade
do ponto de vista fisiológico e mental
checando bem mundo interior e exterior,
e apesar de tudo isto, apesar dessa leveza, ainda não aprendi a voar,
mas não se inquietem, meus queridos passarinhos,
que ainda hei de me juntar a vocês,
se não estou aí, é porque este mundo,
banal e cruel, infinitamente cruel, excessivamente banal,
me prende cá refém,
mas não se inquietem, meus queridos passarinhos,
do jeito que as coisas cá andam, continuo nulo
e aprendo a voar este setembro para planar sobre esta savana gigante
e finalmente cantar como se as coisas não me importassem.

Enciclopédias

Eu coleciono enciclopédias

Todas estas ricamente ilustradas

E tenho viajado o mundo,

E tendo viajado todo este mundo

Visitado todo canto desta terra

Tbilisi! Davao! Marselha!

Oh meu Deus, quantos nomes,

E não há uma pessoa que possa provar

Minha passagem por estes lugares.

Chamam Josip para testemunhar

Falar de minha existência,

Josip de Tbilisi, bom camarada,

Que não conheço,

Josip diz que nunca viu-me lá em Tbilisi,

Pois se Josip não lembra de me ver,

Lembro de vê-lo e tenho Tbilisi gravada no meu âmago

E sinto-me profundamente enjoado de tudo,

Nada, além de mim mesmo, é-me estrangeiro.

Poema do óbito no. 3

Nunca quis ser eu.
Se tivesse a oportunidade de sê-lo, seria outro.
Porque este coração que aperta,
este fôlego que rareia,
esta previsão de cair morto lá no estacionamento
assim atrapalhando o mundo todo
(de novo)
pois é área movimentada,
esta solidão opressora que
primeiramente me chuta
me dá dois socos
chama-me de mau diz-me feio
mais alguns chutes
e depois continua ao meu lado,
um relacionamento abusivo verdadeiramente abusivo,
tudo isso sem o lado purificador do fato
da violência
não existem n’outro
ou se existem, o outro faz segredo disto,
mas o outro é sujeito sortudo,
o outro tem família,
tem pais tem mães tem irmãos,
meu irmão mandou a polícia para a gente,
meu papai bebeu um frasco de rivotril, se trancou,
e desmaiou, e depois bebeu, se trancou
e desmaiou, e então o recolhi, disse-lhe pai,
dei comida, dei carinho, dei cama,
e ele mordeu-me a mão,
mamãe chamou-me vagabundo,
me agrediu mas o fato não foi purificador,
e o resto olha
eles olham parados, talvez se questionam
perguntam-se: devo? devo eu?
se devem, nunca fazem.
Algum voluntário que seja outro quer aliviar um privilegiado?
Pois não gosto de ser eu, nunca gostei, nunca gostarei,
se tivesse a oportunidade de sê-lo, seria outro,
Então vista a minha pele,
diga alguma coisa Proust,
tome café pois o café faz as mãos tremerem
e elas tremem, ah, elas tremem!,
e aprecie o passeio pois lá vou-me indo
e não me volto,
me jurei que não voltava.

Poema do meu pré-óbito no. 1

Por favor, não quero velas,
não quero as suas velas,
se você as ver, por acaso,
tire-as pois não as quero,
eu, defunto, na suprema condição de defunto,
pois nada hoje é mais eterno que meu frio corpo
(amanhã? quem sabe,
vivei esperando pelo porvir e ele nunca chegou,
o trem se atrasou
e infelizmente eu estava com suéter do avesso,
mas amanhã! amanhã!
confrade, do amanhã tens tu notícias?
das mais briosas, camarada)
exerço o único direito que venho a exercer como vivo defunto
e rejo meu funeral como Karajan regeu sua filarmônica
(e na minha liberdade de defunto, tomem-me por Herr K,
digam que não sei reger Wagner,
condenem-me, vocês todos são Furtwangler),
não de uma maneira macabra, mas de uma maneira suave,
ou imperiosa, (admito que admirei mais o fato do Karajan
do que suas mãos e batuta),
pois Karajan era budista e budismo nunca tendo me apetecido
mesmo assim tenho certeza que o budista não acredita no inferno
e então não tendo inferno para temer, paraíso para aspirar,
não aspirando reinar em nenhum dos dois,
o funeral deste Daniel Lôbo, nascido em Brasília, não é macabro,
é só gente a comemorar o corpo prestes a ser engolido pela terra
(ignorando se foi mau
se foi bom
se foi, se esteve, se creu),
mas por favor: digo não às velas!
e arranjem-me umas carpideiras para fazerem volume.

Poema do pré-óbito no. 2

Partindo do sul deste país,
[país este fundado por meus antepassados
fidalgotes lusitanos descontentes
com sua parte lá em Ponte de Lima
pretos caçados, tragos cá, fugidos, e então caçados
e então libertados para serem então caçados
e os nativos que estando aqui nativos não foram lá queridos
por aqueles fidalgotes que almejando mais que Ponte de Lima,
metade de um mundo,
destruíram suas nações para fazerem aqui a deles
que não era nem lá mas nem cá
e um canto triste entoa aqui desde então]
volto para este Planalto Central,
que cruelmente me pariu
para ser criado sozinho nesta savana desordenada e bela,
para aferir aqui a possibilidade de continuar certa empresa e
para tal, vejo meus livros,
e os vejo maioria sumidos,
penso: há de ter algo de bom,
ainda há família, sempre há de ter família,
família vem cá, me visitar,
uma visita social, mas cá entre nós
não falamos nem de Michelangelo,
e eis então que percebo,
faminto por afeição, sempre fui um faminto,
embora não coma mais pois me dizem gordo
e estou, sim, gordo,
como venho percebendo nas mais diversas ocasiões,
que família não há, não houve, não haverá,
que empresa sozinha é essa a minha!,
e então decido que é hora de finalmente tomar tal ação
ação firmemente decisiva, embora minhas mãos tremam
como consequência de tal,
e tomo assim tudo que consigo achar
tento fazer um coquetel mortal:
pego alprazolam 1mg
duas caixas
pego clonazepam 2mg
uma caixa e um frasco
pego valproato 250mg
várias caixas,
compraram pois um suco de uva
para a visita do irmão querido e traiçoeiro
que recentemente comprou apartamento burguês,
aburgueisado e grande,
ah! como nunca haverei de comprar tal apartamento!,
o tomo então como se fosse meu último vinho
pois nunca me afeiçoei ao vinho mesmo
— e nem a Deus,
nem creio que tivesse um a quem se afeiçoar,
se me levam às portas do céu, bela cena esta, o pergunto eu:
Deus, o Senhor é um meritocrata? —
e é isto, o fim é isto:
escrevam isto no meu túmulo
“sua empresa felizmente não prosperou,
morreu em Brasília,
não teve família,
mal coisou, almejou tanto
conseguiu algo e este algo
não sendo suficiente
para si, muito menos para os outros,
vida foi concluída em dia X”.

Afogado na Joaca

Escuto tango. Esse tango específico sempre me conforta, tem algo de caloroso nele. Raramente tenho me sentido confortável. A vida tem sido mais desconforto. Talvez por isso a Argentina me encantou e me encanta até hoje. O tango me traz conforto, me traz calor: por que a Argentina (ou Uruguai) não teria o mesmo efeito?

Continuo solitário. Continuo mil coisas. Mas agora sou calouro de Letras Português da gloriosa Universidade Federal de Santa Catarina. Me importo com rankings então fui ver onde a princesinha da Trindade se encontrava e somos (somos? mal sou calouro) a vigésima-segunda da América Latina. Continuei triste. Talvez rankings não sejam tão importantes assim.

Pensei que talvez fosse ser internado semana passada. Felizmente, não fui. Por eu ter tentado me matar recentemente inferem que logo logo haverei de tentar novamente. A psiquiatra não quis deixar a medicação comigo. Disse que não era louco de tentar algo de novo com medicação. Estou com as receitas.

Nem sei mais do que reclamar. Sou solitário sim. Sempre fui solitário. Não tive a maioria das experiências de um adolescente comum. Tenho poucos amigos. Nunca fui às casas deles. Talvez eu não tenha amigos. Minha família é disfuncional e aprendi o que significa suicídio desde cedo. Falei com minha mãe semana passada e quase tive uma crise de ansiedade.

Tentei contactar quase todo mundo. Não foi sucesso. Me senti ainda mais solitário.

As coisas deveriam ter melhorado. Me mudei de cidade. Recitei meus poemas em um bar. Sou quase universitário agora. Mas agora só me vem a memória que certa feita um primeiro ministro australiano foi mergulhar no mar e nunca mais voltou. E penso que isso não é tão incomum. Então penso em pegar um uber até Joaquina e me afogar lá. Virginia Woolf morreu assim. Afogada. Suicídio. Mas não em Joaquina. E eu não sou Virginia Woolf.

Sobre derrubamento de estátuas

Há tempos venho tomado valor, ou seja orgulho, não tendo muitos motivos outros dos quais orgulhar-me, de ser afidalgado, levemente afidalgado, não demasiadamente pois arriscaria-me assim parecer anacrônico, não sendo totalmente fidalgo pois tenho alguns costados judeus e pretos, coisa pouca coisa muita, mas tendo costados pretos, tendo costados fidalgos, sendo pentaneto na linha paterna de um cavaleiro do Hábito da Ordem de Cristo que liderou uma contrarrevolução em nome do nosso rei D. João VI e que tinha alguns escravos (a conta era mais de cem), sendo decaneto de um herói da Guerra Holandesa que fez preservar este Brasil luso tão apreciado por nós todos e que fez governar aquele Rio de Janeiro e esse Brasil, descendendo dos primeiros povoadores de Olinda e da cidade de São Salvador da Baía, e tendo também alguns antepassados escravos, percebo-me, no topo de uma mania, como a pessoa ideal para discutir sobre este assunto de derrubar essas estátuas pois obviamente alguns viraram estátuas ou nomes de rua. Eu venho me masturbando há tempos com a glória de todos esses antepassados em mente, eu venho me masturbando amiúde pensando nas mais diversas estátuas dos mais diversos facínoras; venho me apresentado como trineto daquela estátua ali no Vale do Paraíba, como tetraneto do sujeito que pediu a pena de morte pr’aquela estátua ali no centro do nosso Rio de Janeiro maravilhoso (feito fundar por um primo! Deus o tenha, Estácio de Sá, pois ainda consigo uma boa mamata com base neste parentesco longínquo), e venho ouvindo uau! e nossa que legal, então falo eu com um fidalgo? a quais respondo, humildemente pois a nobreza obriga, por favor, diga-me afidalgado e não me faça especial vénia.

Estabelecida minha perversão sexual, sobre qual converso frequentemente com meu psicanalista, um senhor que por se encontrar neste vasto domínio de perversão sexual, se compadece de meu problema e o compreende, e estabelecida minha total falta de méritos fora aqueles oriundos da fidalguia, registrados em alguns nobiliários e anuários genealógicos, arrisco-me a engendrar uma argumentação a favor da manutenção da presença dessas estátuas de todas aquelas gentes que talvez tenham matado, talvez tenham escravizado, talvez tenham estuprado, e digo estes talvez com toda a certeza deste mundo, mas que seguem provendo validação àqueles pobres meninos brancos saudosos da fidalguia de seus antepassados, gente como a gente ou ao menos gente como eu, algo que, em minha opinião muito valorosa, seu imenso valor já tendo sido estabelecido neste ensaio e pelo meu sobrenome, é a mais válida raison d’être.

O argumento principal deste ensaio, e talvez único, é que demolir estátuas para acomodar maiorias, ou seja os negros, enquanto fere uma minoria extremamente pequena e sem voz, a dos membros das famílias principais desta terra, é algo insanamente tirânico, e a história, que espero ser escrita por algum parente, haverá de condenar todos aqueles que pedem a demolição de um inocente Borba Gato de colete, ferindo assim milhares de afidalgados, os levando à marginalidade, mostrando a todos estes jovens que o Brasil não os deseja.

Bilhete

Quando Eu era pequeno, quando Eu era gurizinho, quando a gente contava dez anos do meu nascimento em dois-mil-e-dois, as potências continentais, França, Alemanha e Rússia, fascinavam-me; a Alemanha era o brilho dos meus olhos – desde aquela época meus olhos não brilham, eles não brilham mais, e meus olhos são como os d’um peixe morto, as pessoas conhecem-me como “aquele peixe”, e por muito as pessoas notavam que Eu tinha olhos tristes, e as pessoas notavam que Eu era triste, mas a verdade é que triste Eu era porém os meus não estavam mortos, agora no presente momento encontro-me impossibilitado de sentir muita coisa, de sentir tristeza mesmo havendo motivos para que Eu sinta-me triste, de sentir felicidade não havendo motivos para sentir felicidade, e outros sentimentos que não conheço pois sempre gostei de manter uma complexão e imagem de ferro, agora no momento presente aqui presente encontro-me impossibilitado de SENTIR COISAS e assim não posso chorar e finalmente sinto meus olhos mortos, finalmente sinto o peso deles, e meus olhos estando mortos não vejo outra saída, não vejo muita coisa, o Mundo agora está mais pacato, as poucas cores que Eu enxergava não estão lá mais e com isto vêm-me a mente muitas coisas coisas deveras providenciais e consequenciais e certo estou que tal situação demanda providência e consequência: Eu idolatrava Adenauer, o antigo prefeito de Colônia pelo Zentrumspartei (um partido católico e conservador fundado para combater as políticas anti-católicas de Bismarck; Bismarck, meu mais potente príncipe, por que tão sempre iracundo?), que tinha resistido ao nazismo mas não muito, e que tinha capitaneado a Bundesrepublik rumo à prosperidade, e Merkel, a figura quase materna que dominava a cena política alemã e meus sonhos sempre aparecendo num tapete mágico que sabia toda direção e que sempre dava-me carona até Berlim, e era obcecado com o Kaiser Wilhelm II, neto terrível da Imperatriz da Índia, que tinha a perna deformada e por isto sentia que precisava ser mais – Eu também precisava ser mais pois ninguém me entendia, pois os erres saiam sequelados da minha boca, e ninguém me entendendo, e ninguém ouvindo meus erres, eu precisava compensar pelos erres e erres mal-ditos para viver entre os Outros como Igual ou perto de Igual; agora, Eu suicida, Eu quase me matando pulando do prédio ou com uma corda pois tenho um Manual sobre como se matar e o Manual faz tudo parecer demasiado complexo e não quero sobreviver meu suicídio pois isto seria constrangedor e Eu sei quem foi Adenauer Eu admirei quem foi Adenauer então Eu deveria me matar e pronto, lembro-me de Adenauer, lembro-me de Merkel, lembro-me do Kaiser e penso que lá foi coisa, isto foi coisa, e que as Coisas falharam como elas deveriam ter falhado.

Contaram-me estes dias que Eu glorifico-me de todos os meus conhecimentos; por isto, peço absolvição a quem quer que esteja disposto a absolver-me, pois eu pequei e tenho pecado: almejei a ser gente; não sucedi, claro – faltaram-me os erres, faltou-me a cara, faltou-me a boa disposição.

Eu, que não tenho tido certeza da minha existência, Eu, que não tenho tido amigos, Eu, que tenho sido sozinho e que tenho podido não contar em ninguém, Eu, que tenho descoberto que meu pai é pedófilo, Eu, que não tenho sabido se minto ou não, Eu, que tenho tido certeza que Todos os Outros pensam que eu minto, que eu, que tenho sido abandonado, eu, que tenho sido – e ainda sou – descendente dos primeiros habitantes de Salvador da Bahia e Olinda, Eu, que não tenho sido amado, Eu, que tenho tido crises de paranoia, Eu, que tenho tido a cara deformada, Eu; silêncio! são os pratos que soam: Wagner está morto, e Eu, quase judeu, talvez tivesse sido judeu se certas Coisas não ocorressem, Eu quase-judeu regojizo-me; Eu, que infelizmente tenho habitado este corpo que apresento-não-vos pois a vergonha é muita, decidi terminar minha Vida próxima semana. As Coisas têm sido muitas, as Coisas têm sido tremendas, e felizmente um Destino malvado bravo porque o reprochei numa manhã de abril abençoou-me com Solidão e com a Psicose, e não tendo ninguém, não sendo amado por ninguém, não sendo querido por ninguém, e sendo ainda mais paranoico, hoje falta-me pudor, hoje não há censura, e desta forma cai o corpo.

Enquanto moribundo aqui, tomo alegria ao saber que o Outro finalmente sabe; moribundo enquanto aqui, espanto pois o Outro sabe e ele não deveria saber; aqui enquanto moribundo, alegria ao saber que a Morte finalmente se aproxima, que finalmente tenho um descanso; moribundo aqui enquanto, sento-me com a morte para um chá basilar, aproveitando para usar aquela porcelana de Dresden sobre qual meu tio antiquário contou-me quando eu era pequeno e sobre qual tenho feito segredo e atenção, onde Eu escolho tomar chá de camomila com leite e limão e Ele escolhe tomar chá de canela, conto sobre meus antepassados digo que todos foram gente de bem que fundaram uma das primeiras igrejas de Salvador e pergunto como todos estão, e digo que quero morrer, que posso morrer pois morrer é a maior liberdade dada a gente daqui de cima & baixo, e que quero morrer pois a vida agrada-não-me muito, muito pelo contrário ela me pertuba imenso, não há ninguém sr. Morte, não há nada sr. Morte, nem chorar ando conseguindo sr. Morte, Eu venho sido vil profundamente vil sr. Morte, as cores!, e Eu consideraria morrer um favor imenso que me faria substancial gosto, Eu sei que os Outros também se matam mas a certeza da Morte é-me necessária, por favor sr. Morte, e o sr. Morte compadece-se do meu pedido e com canela vibrando em seu paladar, com as memórias saxãs vindo a tona, Ele todo treinado numa prosódia e procedimentos somente conhecidos àquela casta de gente honorável garante-me que Eu morro, que o Destino ofendido por mim colocava minha vida como miserável e minha morte como próxima, e o Destino sendo irreprochável e Ele, a Morte, sendo mero servente do Destino, a Morte era garantida e Eu aqui moribundo enquanto tomo alegria ao saber disto digo que Eu, Daniel Lôbo, nascido em Brasília no dia dezesseis de maio do ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e dois, morro e que todos têm como fim morte e que não há coisa notável nisto fora o fato de que Eu morro mais cedo.

Peço perdão a todos por não ter sido melhor, peço perdão a todos por ter sido Eu, peço perdão por toda palavra dita, por toda palavra mal-dita e por toda palavra não-dita, peço perdão por toda coisa feita e por toda a coisa-não-feita, peço perdão por toda má ação e por toda não-ação, peço perdão por cada vez que titubeei, peço perdão àqueles que eu tenha ofendido e peço perdão àqueles que eu talvez tenha ofendido e peço perdão àqueles todos que não ofendi, peço perdão por toda vez que não cometi mal nem bem ficando no cinzento moral, e peço perdão acima de tudo àquele Lá por Eu ter tomado parte desta farsa gigantesca.

Roguem por mim, roguem por mim e pela minha alma porque Eu não tenho rogado por ambas.

Obrigado, muito obrigado, obrigado por tudo.