Quando Eu era pequeno, quando Eu era gurizinho, quando a gente contava dez anos do meu nascimento em dois-mil-e-dois, as potências continentais, França, Alemanha e Rússia, fascinavam-me; a Alemanha era o brilho dos meus olhos – desde aquela época meus olhos não brilham, eles não brilham mais, e meus olhos são como os d’um peixe morto, as pessoas conhecem-me como “aquele peixe”, e por muito as pessoas notavam que Eu tinha olhos tristes, e as pessoas notavam que Eu era triste, mas a verdade é que triste Eu era porém os meus não estavam mortos, agora no presente momento encontro-me impossibilitado de sentir muita coisa, de sentir tristeza mesmo havendo motivos para que Eu sinta-me triste, de sentir felicidade não havendo motivos para sentir felicidade, e outros sentimentos que não conheço pois sempre gostei de manter uma complexão e imagem de ferro, agora no momento presente aqui presente encontro-me impossibilitado de SENTIR COISAS e assim não posso chorar e finalmente sinto meus olhos mortos, finalmente sinto o peso deles, e meus olhos estando mortos não vejo outra saída, não vejo muita coisa, o Mundo agora está mais pacato, as poucas cores que Eu enxergava não estão lá mais e com isto vêm-me a mente muitas coisas coisas deveras providenciais e consequenciais e certo estou que tal situação demanda providência e consequência: Eu idolatrava Adenauer, o antigo prefeito de Colônia pelo Zentrumspartei (um partido católico e conservador fundado para combater as políticas anti-católicas de Bismarck; Bismarck, meu mais potente príncipe, por que tão sempre iracundo?), que tinha resistido ao nazismo mas não muito, e que tinha capitaneado a Bundesrepublik rumo à prosperidade, e Merkel, a figura quase materna que dominava a cena política alemã e meus sonhos sempre aparecendo num tapete mágico que sabia toda direção e que sempre dava-me carona até Berlim, e era obcecado com o Kaiser Wilhelm II, neto terrível da Imperatriz da Índia, que tinha a perna deformada e por isto sentia que precisava ser mais – Eu também precisava ser mais pois ninguém me entendia, pois os erres saiam sequelados da minha boca, e ninguém me entendendo, e ninguém ouvindo meus erres, eu precisava compensar pelos erres e erres mal-ditos para viver entre os Outros como Igual ou perto de Igual; agora, Eu suicida, Eu quase me matando pulando do prédio ou com uma corda pois tenho um Manual sobre como se matar e o Manual faz tudo parecer demasiado complexo e não quero sobreviver meu suicídio pois isto seria constrangedor e Eu sei quem foi Adenauer Eu admirei quem foi Adenauer então Eu deveria me matar e pronto, lembro-me de Adenauer, lembro-me de Merkel, lembro-me do Kaiser e penso que lá foi coisa, isto foi coisa, e que as Coisas falharam como elas deveriam ter falhado.
Contaram-me estes dias que Eu glorifico-me de todos os meus conhecimentos; por isto, peço absolvição a quem quer que esteja disposto a absolver-me, pois eu pequei e tenho pecado: almejei a ser gente; não sucedi, claro – faltaram-me os erres, faltou-me a cara, faltou-me a boa disposição.
Eu, que não tenho tido certeza da minha existência, Eu, que não tenho tido amigos, Eu, que tenho sido sozinho e que tenho podido não contar em ninguém, Eu, que tenho descoberto que meu pai é pedófilo, Eu, que não tenho sabido se minto ou não, Eu, que tenho tido certeza que Todos os Outros pensam que eu minto, que eu, que tenho sido abandonado, eu, que tenho sido – e ainda sou – descendente dos primeiros habitantes de Salvador da Bahia e Olinda, Eu, que não tenho sido amado, Eu, que tenho tido crises de paranoia, Eu, que tenho tido a cara deformada, Eu; silêncio! são os pratos que soam: Wagner está morto, e Eu, quase judeu, talvez tivesse sido judeu se certas Coisas não ocorressem, Eu quase-judeu regojizo-me; Eu, que infelizmente tenho habitado este corpo que apresento-não-vos pois a vergonha é muita, decidi terminar minha Vida próxima semana. As Coisas têm sido muitas, as Coisas têm sido tremendas, e felizmente um Destino malvado bravo porque o reprochei numa manhã de abril abençoou-me com Solidão e com a Psicose, e não tendo ninguém, não sendo amado por ninguém, não sendo querido por ninguém, e sendo ainda mais paranoico, hoje falta-me pudor, hoje não há censura, e desta forma cai o corpo.
Enquanto moribundo aqui, tomo alegria ao saber que o Outro finalmente sabe; moribundo enquanto aqui, espanto pois o Outro sabe e ele não deveria saber; aqui enquanto moribundo, alegria ao saber que a Morte finalmente se aproxima, que finalmente tenho um descanso; moribundo aqui enquanto, sento-me com a morte para um chá basilar, aproveitando para usar aquela porcelana de Dresden sobre qual meu tio antiquário contou-me quando eu era pequeno e sobre qual tenho feito segredo e atenção, onde Eu escolho tomar chá de camomila com leite e limão e Ele escolhe tomar chá de canela, conto sobre meus antepassados digo que todos foram gente de bem que fundaram uma das primeiras igrejas de Salvador e pergunto como todos estão, e digo que quero morrer, que posso morrer pois morrer é a maior liberdade dada a gente daqui de cima & baixo, e que quero morrer pois a vida agrada-não-me muito, muito pelo contrário ela me pertuba imenso, não há ninguém sr. Morte, não há nada sr. Morte, nem chorar ando conseguindo sr. Morte, Eu venho sido vil profundamente vil sr. Morte, as cores!, e Eu consideraria morrer um favor imenso que me faria substancial gosto, Eu sei que os Outros também se matam mas a certeza da Morte é-me necessária, por favor sr. Morte, e o sr. Morte compadece-se do meu pedido e com canela vibrando em seu paladar, com as memórias saxãs vindo a tona, Ele todo treinado numa prosódia e procedimentos somente conhecidos àquela casta de gente honorável garante-me que Eu morro, que o Destino ofendido por mim colocava minha vida como miserável e minha morte como próxima, e o Destino sendo irreprochável e Ele, a Morte, sendo mero servente do Destino, a Morte era garantida e Eu aqui moribundo enquanto tomo alegria ao saber disto digo que Eu, Daniel Lôbo, nascido em Brasília no dia dezesseis de maio do ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e dois, morro e que todos têm como fim morte e que não há coisa notável nisto fora o fato de que Eu morro mais cedo.
Peço perdão a todos por não ter sido melhor, peço perdão a todos por ter sido Eu, peço perdão por toda palavra dita, por toda palavra mal-dita e por toda palavra não-dita, peço perdão por toda coisa feita e por toda a coisa-não-feita, peço perdão por toda má ação e por toda não-ação, peço perdão por cada vez que titubeei, peço perdão àqueles que eu tenha ofendido e peço perdão àqueles que eu talvez tenha ofendido e peço perdão àqueles todos que não ofendi, peço perdão por toda vez que não cometi mal nem bem ficando no cinzento moral, e peço perdão acima de tudo àquele Lá por Eu ter tomado parte desta farsa gigantesca.
Roguem por mim, roguem por mim e pela minha alma porque Eu não tenho rogado por ambas.
Obrigado, muito obrigado, obrigado por tudo.